anotações para um novo território, por Fernanda Morse

*
preciso escrever

*

Um teto todo seu1
está
lido – este livro
fortalece o desejo
múltiplo
de vida

*

às vezes amo meu quarto
janelas fechadas e tudo é dentro

*
território
desterritório
reterritório

*
concha casco casca carcaça casulo cápsula crosta casa
coisa cenho cara corpo côdea cabeça crânio coluna

essas coisas duras.

*

Carmen veio me dizer – sem nenhum diálogo – que um espaço apenas se cria onde algo se consome.

*

o que falta para Mary Carmichael2 ser uma poeta?

“Por mais desajeitada que fosse, ou por mais que ela não tivesse o toque inconsciente da pena que faz o mero virar de páginas de uma Thackerau ou de um Lamb ser um prazer para os ouvidos, ela havia – comecei a achar – dominado a primeira grande lição; escrevia como uma mulher, mas como uma mulher que se esquecera de que era uma mulher, de forma que suas páginas estavam repletas daquela qualidade sexual curiosa que aparece apenas quado o sexo não tem consciência de si mesmo”3

o que falta para Mary Carmichael ser uma poeta?

“Dê a ela mais cem anos, concluí, lendo o último capítulo (…), dê-lhe um espaço, um teto todo seu e quinhentas libras por ano, deixe que ela diga o que lhe passa na cabeça e deixe de fora metade do que ela hoje inclui, e ela escreverá um livro melhor algum dia.”4

*

tem casa que ninguém alcança.

*

na minha rua
as árvores
resistem

mas em são paulo
tanta coisa
morre

*

“como desfazer o rosto, liberando em nós as cabeças exploradoras que traçam linhas de devir? Como atravessar o muro, evitando ricochetear sobre ele, ou ser esmagado? Como sair do buraco negro, em vez de girar no fundo, que partículas fazer sair do buraco negro? Como quebrar até mesmo nosso amor para nos tornarmos, enfim, capazes de amar? Como tornar-se imperceptível?” 5

*

“I am myself. That is not enough.”
Sylvia Plath – The Jailer

*

Woolf propõe
para além da materialidade da casa ou do dinheiro
que uma mulher precisa
dar vasão ao seu desejo
e com ele construir
um território criativo
propõe
que se desfaçam as linhas e traços comuns
amarras do padre do pai
e se produza uma autonomia desejosa
desejada
onde pode-se até
não ser.

onde pode-se tornar imperceptível tornando-se.
(e não sendo tornado, sujeitado, assombrado)

*
escrever em fruição

escrever executando todos os gêneros

*
trânsito
um trânsito que conduza o ritmo

em abertura

*

“instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra.”6

*

depois de partir
como se chega?

*

todos dormem
olho a cidade
e duvido

*

escrever acarreta devires

– imperceptível
– mulher
– animal

mulher
mulher
mulher

*

depois de partir
como se chega?

*

Carmen : um breve ruído
agora se dirige a mim. antes,
afundo o cigarro

cuidadosamente

ergo meu rosto – quero recebê-la.

*

a irmã do shakespeare 7 – quero recebê-la
woolf moore bishop plath dickinson sexton riding safo mansfield c. – quero recebê-las
todas as mulheres com rascunhos presos no ventre – quero recebê-las
todas as mulheres com fome e todas as suas fugas – quero recebê-las.

/notas/
¹ Ensaio de Virginia Woolf publicado no ano de 1929, advindo de palestras realizadas em 1928 em Newnham College e Girton College, escolas para mulheres na Cambridge University. Convidada para falar sobre “mulheres e ficção”, Woolf volta-se para uma reflexão acerca do patriarcado e os impedimentos que este veio a criar sobre a liberdade da escrita/expressão feminina, levantando a premissa de que uma mulher para escrever ficção precisa de dinheiro no banco e um teto todo seu.

² Escritora hipotética criada por Woolf. Ao pegar o livro de Mary na estante de escritores dos anos 20 do século XX, viventes, produzindo no tempo que isso já é “permitido” às mulheres, investiga até onde se pode ir dentro dessa “permissão”, com todo o passado (de impossibilidades criativas) ainda pesando sobre a pena.

³ WOOLF, Virginia. Um Teto Todo Seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014. P. 133

⁴ WOOLF, Virginia. Um Teto Todo Seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014. P.134

⁵ DELEUZE, Gilles, PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998. P. 37

⁶ DELEUZE. G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 3. São Paulo: Ed. 34, 6ª reimpressão – 2008. P. 24

⁷ Outra personagem criada por Woolf em seu ensaio. Judith, por sua vez, seria a irmã do grande escritor inglês, teria todo o desejo de escrita e talento de seu irmão, mas provavelmente morreria disso, porque a ela não seria concedido o espaço de criar, atuar e ser reconhecida. A ela seria delegada a obediência das imposições de seu pai e de sua família, e, caso viesse a contrariá-los, então seria a culpa de todo o desgosto dos mesmos. Sucumbiria em seu desejo.

“Deixe-me imaginar, já que os fatos são tão difíceis de apurar, o que teria acontecido se shakespeare tivesse tido uma irmã incrivelmente talentosa chamada, digamos, Judith. O próprio Shakespeare frequentou, é provável – sua mãe era uma herdeira -, a escola, onde aprendeu latim – Ovídio, Virgílio e Horácio – e os elementos da gramática e da lógica. Ele era, como se sabe, um garoto traquinas, que cozinhava coelhos e talvez atirasse em veados, e se casou, mais cedo do que devia, com uma mulher da vizinhança, que, mais rápido do que o normal, lhe deu um filho. Essa escapada levou-o a sair em busca da sorte em Londres. Ele tinha, ao que parecia, um pendor para o teatro; começou cuidando dos cavalos na entrada do palco. Logo, passou a trabalhar no teatro, tornando-se um ator de sucesso, e a viver no centro do universo, encontrando todo mundo, conhecendo todo mundo, praticando sua arte nos cartazes, exercitando suas habilidades nas ruas, ganhando até mesmo acesso ao palácio da rainha. Enquanto isso, sua talentosa e extraordinária irmã, é de se supor, ficava em casa. Ela era tão aventureira, tão imaginativa, tão impaciente para conhecer o mundo quanto ele. Mas ela não frequentou a escola. Não teve a oportunidade de aprender gramática e lógica, que dirá ler Horácio e Virgílio. Apanhava um livro de vez em quando, talvez um dos de seu irmão, e lia algumas páginas. Mas logo seus pais surgiam e ordenavam que fosse coser as meias ou cozer o guisado e não mexesse em livros e papéis. (…) Ela gritou que considerava o casamento odioso, e por causa disso o pai bateu nela com severidade. (…) Ela reuniu uma pequena parte de seus pertences, desceu por uma corda numa noite de verão e pegou a estrada para Londres. (…) Ela tinha uma ligeira inclinação, um talento, assim como o do irmão, para a harmonia das palavras. Assim como ele, gostava de teatro. Estava às portas do palco; queria atuar, disse ela. Os homens riram na sua cara.(…) por fim, Nick Greene, o ator-diretor, teve pena dela; ela se viu grávida desse cavalheiro, e então – quem pode medir a fúria e a violência do coração de um poeta quando preso e emaranhado em um corpo de mulher? – matou-se em uma noite de inverno, e jaz enterrada em alguma encruzilhada pela qual passam os ônibus que hoje param na frente de Elephant and Castle. (WOOLF, 2014, p.p. 70-72)

Ilustração: Luiza Guedes, www.facebook.com/luiguedes.arte

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