Embates sempre ocorreram em qualquer grupo feminista de qualquer onda em qualquer tempo. No atual momento, nos deparamos com grupos pela internet se rachando por inviabilizarem lutas e exaltar outras. O termo sororidade está sendo questionado e deve ser problematizado sempre. Nos questionamos pois a sororidade é um óculos cor de rosa (permitam-me o cliché) que massifica ‘os problemas das mulheres’, não levando em questão a hierarquia dos mesmos. Explico. Ao invés de nos unirmos pelas nossas opressões em comum, que seria mais relevante, nos unimos por sermos mulheres e há um desgaste enorme em exaltar nossas importantíssimas diferenças a cada vez que um tema específico se levanta.
Nenhuma mulher é obrigada a ter sororidade pela outra apenas pelo fato dela ser mulher. Há questões culturais, étnicas, de classe e caráter que não devem ser tomadas como de fácil digestão e sim como nossas características. Passar por cima disso é pior do que passar por cima de cada história, é silenciar cada história, é definir um status universalizante de ‘mulher’. E soa tão machista como mulher ser objetificada, tão racista quanto o termo ‘cultura negra’ que suprime todas as culturas de cada país africano que são extremamente diferentes umas das outras.
Rotineiramente, andamos sozinhas a milhão pela rua, já proferindo pensamentos anti-chacota, anti-paquera que ainda nem nos foram verbalizados, mas estamos sempre na defensiva, em nossas cabeças e corpos que socialmente se tornaram lugares artificiais e insuportáveis. Nossas diferenças nos afastam e nossas semelhanças nos unem como num cabo de guerra. Nossas inseguranças, nossas opressões, nosso medo ao discurso, ao debate, ao embate, nossos consentimentos… e de repente, num tropeçar interrompendo todos aqueles pensamentos corriqueiros, entre um passo apertado e outro, a alça do sutiã se abre e na rua, você pede a alguém que a ajude a colocar de volta — uma mulher, qualquer mulher vai entender a sua situação e vai te dar um sorriso cúmplice e não negar essa tarefa que é de lembrar que precisamos umas das outras, ainda que nós sejamos extremamente resistentes ou sozinhas e também independentes.
Há uma rua que podemos caminhar juntas, o caminho que leva a essa rua se chama affidamento, um termo que feministas italianas no século passado criaram para que nos enxerguemos como diferentes e lutemos pelas nossas causas em comum, tirando da reta final o feminismo branco e burguês. Afidamento – e eu já me utilizo de neologia para abrasileirar o termo com um ‘f’ só – é muito mais que reconhecer em outras mulheres as suas diferenças e igualdades, é mais profundo que sororidade, é oferecer sua solidariedade, é desconstruir seus privilégios em prol de um bem maior. É entender de uma vez por todas que existem hierarquias e emergências de luta e ao mesmo tempo entender que cada uma tem seu papel. É preciso saber identificar seu próprio papel. É preciso humildade, é preciso ouvir. É preciso desatar os nós, apertar os cintos nas turbulências, é preciso que ocupemos todos os espaços com nossas lutas e é preciso sairmos juntas na nossa rua em comum.
Nota: Tive a grande oportunidade de fazer um curso sobre arte feminista com a cientista social Carla Cristina Garcia do Inanna Educação que me apresentou esse termo ainda pouco conhecido em terra brasilis e abriu minha cabeça para um tanto de outras coisas. Muito obrigada Carla!
Ilustração: 3M3, www.facebook.com/3m3.3m3