Turbulências: se essa rua fosse nossa, por Ana Coluto

Embates sempre ocorreram em qualquer grupo feminista de qualquer onda em qualquer tempo. No atual momento, nos deparamos com grupos pela internet se rachando por inviabilizarem lutas e exaltar outras. O termo sororidade está sendo questionado e deve ser problematizado sempre. Nos questionamos pois a sororidade é um óculos cor de rosa (permitam-me o cliché) que massifica ‘os problemas das mulheres’, não levando em questão a hierarquia dos mesmos. Explico. Ao invés de nos unirmos pelas nossas opressões em comum, que seria mais relevante, nos unimos por sermos mulheres e há um desgaste enorme em exaltar nossas importantíssimas diferenças a cada vez que um tema específico se levanta.

Nenhuma mulher é obrigada a ter sororidade pela outra apenas pelo fato dela ser mulher. Há questões culturais, étnicas, de classe e caráter que não devem ser tomadas como de fácil digestão e sim como nossas características. Passar por cima disso é pior do que passar por cima de cada história, é silenciar cada história, é definir um status universalizante de ‘mulher’. E soa tão machista como mulher ser objetificada, tão racista quanto o termo ‘cultura negra’ que suprime todas as culturas de cada país africano que são extremamente diferentes umas das outras.

Rotineiramente, andamos sozinhas a milhão pela rua, já proferindo pensamentos anti-chacota, anti-paquera que ainda nem nos foram verbalizados, mas estamos sempre na defensiva, em nossas cabeças e corpos que socialmente se tornaram lugares artificiais e insuportáveis. Nossas diferenças nos afastam e nossas semelhanças nos unem como num cabo de guerra. Nossas inseguranças, nossas opressões, nosso medo ao discurso, ao debate, ao embate, nossos consentimentos… e de repente, num tropeçar interrompendo todos aqueles pensamentos corriqueiros, entre um passo apertado e outro, a alça do sutiã se abre e na rua, você pede a alguém que a ajude a colocar de volta uma mulher, qualquer mulher vai entender a sua situação e vai te dar um sorriso cúmplice e não negar essa tarefa que é de lembrar que precisamos umas das outras, ainda que nós sejamos extremamente resistentes ou sozinhas e também independentes.

Há uma rua que podemos caminhar juntas, o caminho que leva a essa rua se chama affidamento, um termo que feministas italianas no século passado criaram para que nos enxerguemos como diferentes e lutemos pelas nossas causas em comum, tirando da reta final o feminismo branco e burguês. Afidamento – e eu já me utilizo de neologia para abrasileirar o termo com um ‘f’ só – é muito mais que reconhecer em outras mulheres as suas diferenças e igualdades, é mais profundo que sororidade, é oferecer sua solidariedade, é desconstruir seus privilégios em prol de um bem maior. É entender de uma vez por todas que existem hierarquias e emergências de luta e ao mesmo tempo entender que cada uma tem seu papel. É preciso saber identificar seu próprio papel. É preciso humildade, é preciso ouvir. É preciso desatar os nós, apertar os cintos nas turbulências, é preciso que ocupemos todos os espaços com nossas lutas e é preciso sairmos juntas na nossa rua em comum.

Nota: Tive a grande oportunidade de fazer um curso sobre arte feminista com a cientista social Carla Cristina Garcia do Inanna Educação que me apresentou esse termo ainda pouco conhecido em terra brasilis e abriu minha cabeça para um tanto de outras coisas. Muito obrigada Carla!

Ilustração: 3M3, www.facebook.com/3m3.3m3

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